segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Alexandre O'Neil

 


Alexandre Manuel Vahia de Castro O'Neill de Bulhões (1924-1986) foi um escritor português oriundo de Lisboa. A sua atividade literária, fortemente associada ao movimento surrealista, é maioritariamente poética. No entanto, a sua obra também inclui livros, guiões de filmes, e a letra do fado “Gaivota”. Apesar da sua versatilidade criativa, evidenciada pela diversidade das tipologias de obras de sua autoria, O’Neil nunca conseguiu viver da sua produção literária, embora os vários empregos que teve ao longo da vida se tenham relacionado com a escrita.

Tendo sido um opositor ao regime do Estado Novo, foi vigiado pela PIDE durante uma porção significativa da sua vida, e chegou inclusivamente a estar preso. A sua obra não foi estanque às suas desavenças com o estado, sendo o poema “Um Adeus Português” um comentário sobre um incidente com a PIDE.

As suas obras incluem títulos como: A Ampola Miraculosa (1948), No Reino da Dinamarca (1958), Feira Cabisbaixa (1965), De Ombro na Ombreira (1969), A Saca de Orelhas (1979), e Uma Coisa de Forma Assim (1980).

 

UM ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos

vigora ainda o mais rigoroso amor

a luz de ombros puros e a sombra

de uma angústia já purificada

 

Não tu não podias ficar presa comigo

à roda em que apodreço

apodrecemos

a esta pata ensanguentada que vacila

quase medita

e avança mugindo pelo túnel

de uma velha dor

 

Não podias ficar nesta cadeira

onde passo o dia burocrático

o dia a dia da miséria

que sobe aos olhos vem às mãos

aos sorrisos

ao amor mal soletrado

à estupidez ao desespero sem boca

ao medo perfilado

à alegria sonâmbula à vírgula maníaca

do modo funcionário de viver

 

Não podias ficar nesta cama comigo

em trânsito mortal até ao dia sórdido

canino

policial

até ao dia que não vem da promessa

puríssima da madrugada

mas da miséria de uma noite gerada

por um dia igual

 

Não podias ficar presa comigo

à pequena dor que cada um de nós

traz docemente pela mão

a esta pequena dor à portuguesa

tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces

esta roda de náusea em que giramos

até à idiotia

esta pequena morte

e o seu minucioso e porco ritual

esta nossa razão absurda de ser

 

Não tu és da cidade aventureira

da cidade onde o amor encontra as suas ruas

e o cemitério ardente

da sua morte

tu és da cidade onde vives por um fio

de puro acaso

onde morres ou vives não de asfixia

mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

sem a moeda falsa do bem e do mal

 

Nesta curva tão terna e lancinante

que vai ser que já é o teu desaparecimento

digo-te adeus

e como um adolescente

tropeço de ternura

por ti.

 

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