Dia de S.
Martinho – As castanhas na literatura portuguesa
Luís Vaz de Camões
“A fermosura fresca serra
e a sombra dos verdes castanheiros
o manso caminhar destes ribeiros
donde toda a tristeza se desterra”
Miguel Torga ("Reino Maravilhoso")
Mas o fruto dos frutos, o único que ao
mesmo tempo alimenta e simboliza,
cai de umas árvores altas, imensas,
centenárias, que, puras como vestais,
parecem encarnar a virgindade da
própria paisagem.
Só em Novembro as agita uma
inquietação funda, dolorosa,
que as faz lançar ao chão lágrimas que
são os ouriços.
Abrindo-as, essas lágrimas eriçadas de
espinhos
deixam ver numa camada fofa a
maravilha singular de que falo,
tão desafectada que até no próprio
nome é doce e modesta – a castanha.
Assada, no S. Martinho, serve de lastro
à prova do vinho novo. Cozida,
no Janeiro glacial, aquece as mãos e a
boca dos pobres e ricos. Crua,
engorda os porcos, com a vossa
licença...".
João Garcia de Guilhade (Trovador medieval)
Dom Foam disse que partir queria
quanto lhi derom e o que havia.
E dixi-lh'eu, que o bem conhocia:
"Castanhas eixidas, e velhas per souto".
E disso-m'el, quando falava migo:
- Ajudar quero senhor e amigo.
E dixi-lh'eu: - Ess'é o verv'antigo:
"Castanhas saídas, e velhas per souto".
E disso-m'el: - Estender quer'eu mão
e quer'andar já custos'e loução.
E dixi-lh'eu: - Esso, ai Dom Foão:
"Castanhas saídas, e velhas per souto".
Ruy Belo
“Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância”
Maria Judite de Carvalho
“O velho vendedor desta tarde, ali à
esquina da rua, lembrou-me outro, lá longe, no passado de uma cidade diferente,
esse diluído não só em tempo ou em bruma mas também num fumo aromático que não
aquecia, fumo frio, talvez, e que atravessava ossos porosos que existiam, que
estavam ali dentro de mim, um pouco arrepiados também. Eu passava todos os dias
pelo homem, que usava boina e samarra, talvez fosse espanhol, já não me lembro,
e detinha-me sempre para comprar o eterno cartucho de castanhas, que logo metia, em partes iguais, nos bolsos já
largueirões do casaco, deixando ficar as mãos naquele leve, apesar disso
reconfortante calor. Cá fora havia nevoeiro, ou então um espesso teto de nuvens
baças separava-nos da estrela da vida, que desaparecera do nosso convívio há
muito tempo. E eu, mesmo sem querer, mesmo pensando que isso era impossível,
não a imaginava lá em cima mas muito longe, para o sul, aquecendo e
iluminando a minha terra. Fazia o resto do percurso devagar, ia
aproveitando aquela sensação tão doce. Quando chegava ao hotel tinha as mãos
enfarruscadas e as castanhas estavam
quase frias, mas paciência, comia-as mesmo assim."
Aquilino Ribeiro
“António levou-o depois de terra em
terra para angariar recompensas: «aqui lhe davam uma tigela de feijões, ali um
celamim de centeio, acolá um gigo de batatas, nesta casa, naquela e
naqueloutra meio braço de cebolas, o seu naco de toucinho, a sua mancheia de castanhas piladas.”
“E, zás-trás – ali lhe assenta Pedro o
pau na nuca, torna-lhe a secundar o golpe pelo toutiço abaixo e, oh milagre!,
eis que da cabeça de São Cristovão começam a cair moedas, moedas das grandes,
daquelas que corriam no tempo do oito e se trazem no relógio à dependura, a
cair mais e mais que nem castanhas
dum castanheiro quando varejado.”