quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

A Quaresma em Memorial do Convento

A Quaresma em Memorial do Convento


Castigámos a carne pelo jejum…

“… a Quaresma, como o sol, quando nasce, é para todos.

Correu o Entrudo essas ruas, quem pôde empanturrou-se de galinha e de carneiro, de sonhos e de filhós, deu umbigadas pelas esquinas quem não perde vaza autorizada, puseram-se rabos surriados em lombos fugidiços, esguichou-se água à cara com seringas de clisteres, sovaram-se incautos com réstias de cebolas, bebeu-se vinho até ao arroto e ao vómito, partiram-se panelas, tocaram-se gaitas, e se mais gente não se espojou, por travessas praças e becos, de barriga para o ar, é porque a cidade é imunda, alcatifada de excrementos, de lixo, de cães lazarentos e gatos vadios, e lama mesmo quando não chove. Agora é tempo de pagar os cometidos excessos, mortificar a alma para que o corpo finja arrepender-se, ele rebelde, ele insurrecto, este corpo parco e porco da pocilga que é Lisboa.

Vai sair a procissão de penitência. Castigámos a carne pelo jejum, maceremo-la agora pelo - açoite. Comendo pouco purificam-se os humores, sofrendo alguma coisa escovam-se as costuras da alma.”

José Saramago, Memorial do Convento


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